terça-feira, 27 de outubro de 2015

reinado

começo a me desfazer
de xícaras
talheres
e panelas

filmes já vistos
livros já lidos
e de garrafas de vinhos.

passava-me pela cabeça
que a casa estaria sempre cheia.

a solidão reina.

desgostar

desgostar 
é tão estranho
quanto se encantar.

quanto cantar sem música
quanto correr com medo da chuva
quanto não lembrar como era antes de ontem.

desgostar talvez não seja o oposto de gostar
mas outra forma de dizer:
você não habita mais em mim.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

você sem canto

há espaço demais
entre o sofá e a cortina
mas sempre cabe você
na ponta da cega lâmina
na lã da fria lamparina
que clareia a flor da minha varanda

não há um canto sequer
que acolha seus pés
mas sempre permito que você
brinque nas ondas que não me desaminam
na folha em branco sem tinta por cima
no chão que calça seu molde
terraço por onde só seu jeito anda

com canto
com encanto
com melodia e com fantasia

seu canto
nosso canto
ainda que sem canto e sem lugar por perto

há sempre um peito aqui
esperando outro peito vir
colorir esse lugar com afeto

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

um café de amanhã

é de laço de fita vermelha
o enfeite com que te enfeitas
desde o sofá até o corredor
desde a toalha da mesa da varanda até a estação do metrô

desde o fio que a navalha não corta até o braço de arpoador
desde o lenço bordado de amor
desde o leito de visitas até o fundo do poço

é com gosto de chá requentado de ontem
que beijo o seu lábio de cima e o inferior
desde os pelos dos pés que são de outra cor até o cóccix
desde o cio que vem antes do motor

desde o que vivencio e todo seu esplendor
desde a velha vitrola até seu som de outra cor
desde o litro de água que bebo, fingindo licor

e de manhã antes de nascer um sol
sei de tudo porque vivo onde estou
não jogo no lixo o que me arde, a minha fé

nem mesmo enlouqueço esperando o seu voo
mas não me agrada pensar um café de amanhã
se nosso tempo nessa foto já passou.


maria das lágrimas

em que canto
você canta a sua dor?

em que rio de água límpida
você lava o seu ardor?

em que dia que principia
você nunca se encantou

com uma rosa vermelha azul
preta da sua cor?

em que brasa
você diz que não se perde?

em que asa
você nunca se repete?

em que casa
aberta
você diz que não compete

com o cheiro do jasmim
que nunca brotou?

manhã
de sal e andor
caminho
que nunca ando só

amanhã
maria das lágrimas
carinho lhe dou
da nuca ao amor em pó.


quarta-feira, 14 de outubro de 2015

tudo de leve

porta a porta
saída de emergência
entre a primeira e a última
o grito não se aguenta e canta

espanta a poesia de ontem
demora na dor
tenta decorar a linha do equador
põe-se antes de qualquer linha
desfaz a sutil companhia

enquanto suspeita da falta de amor
passa por todos os lados
brechas
becos
corredores

quando é dia e o pincel se perde
a tinta morre de solidão
e a rua escura não precisa mais de postes

porque agora é tempo de tanto faz
o que tiver que ser não será jamais
e talvez nem disso ele mais goste