quarta-feira, 27 de abril de 2016

catártica representação

cansado das mentiras minhas
mentiras suas
mentiras nossas.
mentiras verdadeiras
que aprendi a construir.

das portas abertas
e da necessidade de ficar.
dessa tela bicolor
e da falta de coragem para multicolorir
o vão que se desenha entre o aqui e o lá.

de comprar estantes
de varrer o corredor e a sala todos os dias
de fazer feira
de arrumar a casa
de por à mesa educação
de manter sempre limpa a pia
de arejar o quarto
e não ter onde dormir.

de viajar ficando
de sonhar acordado
de ver o jardim morrendo ao meu lado
de resolver me calar
sem nem mesmo pensar em insistir.

cansado da falta de tempo
do tempo que se expande
do laço que não encontra o corte
do silêncio que grita à noite
da noite que não é mais ponte
e que não reúne o deitar e o fingir ter sono.

de pagar contar
de aparar pontas
de esconder na gaveta lembrança ruim
de entender conceitos
de aplicar preceitos
de respirar preconceitos
de abraços metálicos e sorrisos amarelos
sem fim.

de cruzar linhas de trem
de olhar ondas que não trazer ninguém
de catar feijão
de sepultar os com defeito
de voltar às anotações
de descer e subir escadas
que não levam ao parapeito.

cansado do sabor que vai e que volta
da taça sempre exposta
da calmaria do girassol
de pessoas sempre dispostas
e que não sabem sentir.
de, às vezes, não me opor
de sentir tão pouca dor
de carregar, sem merecimento, outro andor
de, na companhia da lua, ser sol de isopor
de, a fórceps, mais força precisar parir.

cansado de listar conselhos
de dar conselhos
de contar os pelos que caem pelo ralo.
de não mais tê-los: conselhos e pelos
de receber cartas sem selos
de rir dos outros
e de mim.

de demarcar a mala
de enfeitar a varanda
de redecorar a vala
de esvaziar a varanda
de decorar uma nova fala
de querer voar da varanda
e de ter medo de cair

de deixar que cortem minhas asas
de não saber o que fazer com as asas
de viver pisando em brasa
de recolocar o número da casa
e de esquecer que depois do nove
reinicio com outro querubim

cansado de ver:
animais empalhados
seres injustiçados
corpos separados
rimas pobres lado a lado
estradas sem fé
sangue circulando em marcha a ré
peito à procura de afago
meias palavras desejando sentido
vidas vagando à margem do rio
sem nunca mesmo vida ter tido.

cansado de tentar dialogar
o tom da pele com o tom das vestes
com o tom das pessoas
dos lugares sem tons.
de declarações retóricas
de corações engessados
de analisar discursos
e deixar os meus escusos. 

cansado de acompanhar
- com as pupilas e os poucos cílios –
o bailar lento dos ponteiros
de aguardar a temperatura exata da água
de vigiar a alquimia dos temperos
de esperar pelo ônibus que teimar em não chegar
do jato de tinta que borra o papel
do papel da sombra que não se permite se molhar
da novidade, que de tão velha,
é incapaz de me animar.

cansado da inexistência de espaço
para outro verso
no verso do verso da folha
dos fortes vendavais
do vento fraco que não seca meus lençóis
da ausência de sais
da necessidade de minerais
da falta de fibra para ficar em pé
de ser objeto para mérito alheio
de ser chegada sem ser meio
e, mesmo assim, ser caracterizado como o fim.

ainda há pouco acordei sem querer
respirei o que me restava de ar
levantei-me suspenso no ar
olhei-me no espelho
e não me vi:

uma hora tudo isso passa
- dizem por aí -
mas, por enquanto,
um fio de voz confessa:
estou um tanto cansado de mim.


crime meu

sim
eu sou um assassino

talvez
por preguiça
medo
falta de desejo
gosto ou ruindade
mato
sem dó nem piedade
a ideia que vem à cabeça

e tem vontade louca
de ser gente
poema
letra ou canção.

salomé

por que será
que salomé
veio até aqui
a pé?

quis ver o mar?
quis se banhar de fé?

sem deus
sem lá
sem sinal verde
o que esperava ela, então,
aqui encontrar?

voa, salomé
voa

sem limite
e até quando der.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

é assim

quero estar do meu lado
atento a tudo que me desafia
permanecer à margem
do que não tem brilho
nem principia um novo mundo

um homem velho
que traz flores às cinco
antes de anoitecer
um pobre belo
que forja sinos
por simples querer

estar ao lado
de outros olhos e braços
vigiar torres, castelos, sereias

encanto dos seus passos.