terça-feira, 17 de janeiro de 2017

vestido de palavras

a roupa que me veste cabe apenas em mim
é meu número exato
é doce como água do mar que me banha às seis da manhã
e transparente como o sentido da palavra tristeza

a roupa que me veste dança apenas na minha pele
toca somente o mais íntimo segredo que dorme comigo à noite
e no outro dia, cedinho, já se perdeu por entre meus sonhos

a roupa que me veste gosta de carinho
e, ainda que seja lavada em água de rio
com pancada de pedra ou de madeira,
rejeita a tranquilidade fixa do espaço de uma máquina de lavar

a roupa que me veste quer ser livre
quer dizer 'bom dia!' aos pássaros e ter um cantar desafinado
quer ter cheiro de bolo de chocolate, de cenoura ou de suor
e encontrar pousada nos ouvidos certos

a roupa que me veste,
assim como a palavra que me descreve,
só quer ser o que ela precisa ser :
com a forma que já tem
com o que não mais precisa
e o que se perde no pensamento de outrem

quer chegar e ir embora
com a leveza de um beija-flor
e ficar marcado no ouvido da memória
como a beleza de uma flor de maracujá

quer ter vários sentidos
como a palavra que ainda não foi dita
mas que sempre irá significar.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

alquimia

liquefação de sentimentos
mistura de temperos
ausência de sal
(ou de açúcar)
e toda a cor de uma lágrima
é o resultado do dia passado a limpo.

o precipício é mais suave do que o colchão macio
a espera é menos dolorida do que a despedida
o nascimento revela-se tão denso quanto a morte.

como última palavra:
o toque áspero do lençol aos pedaços
construído com três mil fios.