sexta-feira, 17 de novembro de 2017

loneliness

ponta de mar
beira de céu
o balé das pipas
chá das cinco
em ponto
ondas que dormem
depois das dezoito

entre o intervalo
do sorriso da lua
e a lágrima do sol.

castelo de areia.
pingo de tinta
que perde a cor
na boca do menino
e escorre calmamente
até adormecer
na pele-papel

por se sentir só:
como o poema jogado no ralo
ou como o poste apagado na rua.

traços de algum lugar
laços de pó
no ar
que dançam
presos ao tempo
sem força
para desatar
o nó da voz:

o silêncio
é chuva esperada em novembro
que dorme ao relento
porque não pode voltar
para o que é seu.


segunda-feira, 9 de outubro de 2017

poema de segunda

era para ser um poema nu
despido de saudade
arrogância
sentimentalismos
de quinta
sexta
ou frio de sábado à noite

era para ser um poema sóbrio
sem gotas de cerveja
doses homeopáticas de solidão
de beira de estrada
ou lágrimas
proporcionadas
por uma lua cheia

era para ser um poema multicolorido
metade branco
metade azul
e todas as outras partes
com o tom que a vida quisesse pintar
existissem cores à disposição
ou feridas abertas
esperando o tempo para cicatrizar

era para ser um poema rasgado
com portas abertas e janelas floridas
tapetes ausentes
chão frio em pleno meio-dia
abraço quente de despedida
e silêncio cantando
todos os versos
que o peito um dia silenciou

era para ser um poema meu
só meu
apenas meu:

mas as palavras me roubaram de mim.


sexta-feira, 11 de agosto de 2017

eu me amo em você

amo o seu silêncio reto
entre a sala e a varanda
e o seu olhar mirador
que paralisa o tempo e qualquer objeto
transformando o meu peito
em seu país
em seu andor

amo seu corpo ornado de louça suja
sua boca calada que grita muda
meu nome de outro jeito
porque é na dobra
entre a minha esquina e sua rua
que a poesia do encontro se revela
e eu nos permito que você me possua

amo seu gesto no meu alento
suas propagandas
suas firulas
suas palavras que se encontram no breu
e se dissipam na força da solidão
de um pé-de-vento
que, antes de ser tempestade
e com um poder sobrecomum,
deixa à mostra raízes de felicidade

amo o que é seu por inteiro
ainda que queira sempre ser metade
e deixar que em todos os dias
o novo venha e me complete
para novamente estar cheio:
transbordar até nada mais ser
e como a fechadura da porta do corredor
estar sempre à espera sua
tal qual o perfume que mora na melodia
receber você antes das seis
ou na dia e na hora que eu puder lhe ter

amo suas páginas em branco
o trocadilho cometido
e a ausência da urgência de perdão:
o sim, o talvez e até mesmo o seu não
quando você me nega raios de sol
e me oferece, com paixão, abraços em tons de chuva

amo sem precisar gritar que lhe amo
sem necessidade de alianças
porta-retrato gigante exposto nas vias públicas
toalhas bordadas
pedido de casamento

amo porque antes já lhe conhecia
sempre lhe esperei
e sabia que ao descer do ônibus
naquela parada deserta e repleta de gente
você, para mim, apareceria

amo porque os seus defeitos se parecem com os meus
porque suas qualidades se parecem com as minhas
porque minhas mãos não estão mais sozinhas
porque o quadro que é pintado agora
independe de técnicas
procedência e destino:
tem seu lugar na memória

amo porque sei que não haverá eternidade
visto que a cura para todo mal
pode nunca chegar
e tenho pressa de sentir a saudade
das flagrâncias do seu corpo

amo porque preciso
no gosto cheiroso que só habita em você
fazer meu porto
meu ninho
meu par

amo suas idas, viagens, chegadas e demoras
amo porque sei que as tardes de domingo têm outra cor
porque sei que as noites só melhoram
porque os desejos se transformam em outros assuntos
e as mil e uma noites, por serem infinitas,
sempre precisarão de nós
para que reine a fantasia
de se permitir ficar

amo sem precisar amar
sem dizer que amo
sem a ação de conjugar

amo você
porque antes
eu já me amava
e em mim encontro
- há anos -
traços seus
que se tornaram meu lar

amo você
como sempre amei a mim
porque de outra forma
não poderia receber o que você me oferta
tampouco me dar. 

segunda-feira, 31 de julho de 2017

passado a limpo

de todas as cores
a que mais me agrada
é aquela
que ainda
não teve tempo
para colorir
o meu ontem.

sábado, 22 de abril de 2017

abraços partidos

todo o desejo
era de que tudo fosse para sempre
e o 'sempre' durou a eternidade que tinha que durar.
o meses vieram
e com eles as estações:
suas lágrimas
e seus sorrisos.

e a surpresa é que o tempo corrói
tecidos, peles e canções
e distancia abraços,
paixões e presenças:
é o preço que se paga por viver
tudo em dois.

os gozos
- tão rápidos e silenciosos -
diziam que tudo morreria ali
naquele instante que nunca terminaria.

o fato é que amores vêm
e como as tardes de outono
- belas, frias, tristes e poéticas -
se vão.

pessoas
cidades
sabores
e amizades também
chegam subitamente
- como os primeiros pingos da águas de maio -
e partem
com a rapidez dos sinais de um cometa
deixando as esquinas com a sua mais natural cor.

e a vida prossegue
- no seu tempo e do seu jeito -
mostrando que é impossível
e, às vezes, desnecessário
tentar compreender
todos os seus mistérios.

do que eu quero (ou lembrança esquecida)

só sei que quero.

de que lado vem?
não sei.
que tom tem?
desconheço.
que som representa?
ficou por aí.
por onde irá me levar?
não importa.
e quero
porque sei que quero
e não espero
porque sei que nem tenho tanto tempo
nem tempo há
para que seja feito
o que não depende de mim.
mas é dia que cai
em horas sem segundos
porque muda o mundo
a cada respiro
e meu grito se perde mudo
no desejo de ser quase nada.
e mesmo no silêncio escuto
porque a voz morta não se cala
ainda que tudo seja escuro.
doce tempo andou por entre os dedos.
o desejo, agora, pingos de alguma coisa,
vive do que dá
porque mais do que isso não pode ser.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

raio vital

entre tantas portas fechadas
um gosto de sol
penetra no corpo que é só meu:

é o mínimo de luz
que me dá vida
que me leva à vida
e que ilumina todo o céu
suspenso por sobre os meus ombros

quando uma nuvem densa
- carregada de chuva -
escurece tudo aquilo que meus olhos tocam.


sexta-feira, 3 de março de 2017

março de águas

água:
lágrima de anjo
sinal de festa no sertão
efeito da natureza
limpeza no céu

líquido insípido
- às vezes salgado -
quando, debaixo do sol,
escorre pelo corpo meu.

da cor da anágua das viúvas dos interiores
é a solidão de cada pingo de chuva
quando cai e não se encontra
com o sabor que têm os mares.

no início do terceiro mês
dizem que indica purificação da carne,
sinal de finalização do carnaval que ocorreu na minha rua.

outros sentidos ganham a cada estação
as águas que caem, às vezes, sem aviso prévio
deixando se mostrar apenas pelo tom escuro das nuvens.

caia por sobre os meus ombros
sempre que sentir vontade, dona água,
no seu período favorito ou a pedido dos necessitados

e como estrelas que brilham e iluminam toda a terra nas noites de lua nova
faça florir fluorescentes flores
de todas as cores
por todos os meus secos e escuros lados.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

pedaços

vai ficando em cada via
no desenho de cada curva
na expectativa de cada gota
- de um dia se tornar rio -
um pedaço da minha pele
que veste o caminho que percorro
antes de chegar a mim.

se haverá tempo
se roubarão minha fé
se carregarão minhas malas

se terei tempo para arrumar outras malas
se entenderão meus rabiscos
se ouvirão minhas falas
não sei.

de nada sei
sobre o intervalo entre o sono
e nova xícara de café da manhã.

a única verdade que bate à porta
todos os dias
- ainda que as pistas sinuosas me afastem sempre de mim -
é que as palavras me ardem durante toda a noite

e não há chuva
nem ar-condicionado
que aplaque a solidão de uma alma
conjugada apenas com verbos irregulares
e seus aspectos imperfeitos.





terça-feira, 17 de janeiro de 2017

vestido de palavras

a roupa que me veste cabe apenas em mim
é meu número exato
é doce como água do mar que me banha às seis da manhã
e transparente como o sentido da palavra tristeza

a roupa que me veste dança apenas na minha pele
toca somente o mais íntimo segredo que dorme comigo à noite
e no outro dia, cedinho, já se perdeu por entre meus sonhos

a roupa que me veste gosta de carinho
e, ainda que seja lavada em água de rio
com pancada de pedra ou de madeira,
rejeita a tranquilidade fixa do espaço de uma máquina de lavar

a roupa que me veste quer ser livre
quer dizer 'bom dia!' aos pássaros e ter um cantar desafinado
quer ter cheiro de bolo de chocolate, de cenoura ou de suor
e encontrar pousada nos ouvidos certos

a roupa que me veste,
assim como a palavra que me descreve,
só quer ser o que ela precisa ser :
com a forma que já tem
com o que não mais precisa
e o que se perde no pensamento de outrem

quer chegar e ir embora
com a leveza de um beija-flor
e ficar marcado no ouvido da memória
como a beleza de uma flor de maracujá

quer ter vários sentidos
como a palavra que ainda não foi dita
mas que sempre irá significar.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

alquimia

liquefação de sentimentos
mistura de temperos
ausência de sal
(ou de açúcar)
e toda a cor de uma lágrima
é o resultado do dia passado a limpo.

o precipício é mais suave do que o colchão macio
a espera é menos dolorida do que a despedida
o nascimento revela-se tão denso quanto a morte.

como última palavra:
o toque áspero do lençol aos pedaços
construído com três mil fios.