quinta-feira, 10 de novembro de 2016

tudo que eu amo

tudo que eu amo
cabe no intervalo
entre o domingo e o sábado

cabe no bolso da calça azul
com traços velhos da labuta diária
e nos sinais do tempo já de amanhã

cabe na melodia semitonada
na chuva que cai de madrugada
e que só é vista pelo vigia que faz sua ronda solitária

cabe na décima terceira cor do estojo da menina
na segunda xícara suja de café
esquecida sobre a pia da cozinha

no lenço da mão direita que dá adeus
no esquecimento do que ainda não se perdeu
na vigésima quinta hora sem sono e sem companhia.

tudo que eu amo
cabe no rascunho jogado no lixo
e na alegria triste do palhaço do circo

cabe na lentidão de um voo a jato
na falta de relação entre o cérebro e o ato
no não, no sim e no talvez

cabe na brancura da sua pele
no tapete amarelo formado pelos ipês da lagoa
e no silêncio da sua tez

cabe nos filmes de woody allen
nas pinceladas fortes de frida
e nas cenas certeiras de almodóvar.

tudo que eu amo tem a relevância própria
de cada passo dado ao final do nono mês
e, por isso, cabe na queda de quem não tem medo de andar

cabe no cheiro suave de uma água de lavanda
na cantoria estridente debaixo do chuveiro
na água quente da torneira azul e na parede já desbotada

cabe no princípio de uma velha canção que bate à mente
na imagem da revoada, no céu, brincando solta
no ardor sutil e na cor da pimenta dedo de moça

cabe na taça requintada de cristal de qualquer cor que seja
na fumaça que não precisa anteceder o incêndio
e no indispensável afago do colo de quem me beija 

cabe na dor poética de clarice
nas rimas musicais de cecília
e na entrega desmedida de hilst.

tudo que eu amo
cabe na precisão de gil
e em cada letra de caetano

cabe no trajeto de cada sua partida
no formato que configura a ausência de alguém
em ‘todo sentimento’ que só chico tem

cabe na métrica livre de vinícius
na poesia imagética de drummond
no seu assovio desprovido de qualquer tom

cabe no descompasso de um parabéns sem jeito nem graça
na liberdade do colorido das pipas dançando na praia
e no bater de um peito ao primeiro sinal de desgraça.

tudo que eu amo, eu bem sei, certamente terá seu fim:
pode se esgotar com as primeiras águas de abril
ou secar antes mesmo de uma nuvem cheia, em mim, chegar.

mas tudo que eu amo tem azul no nome
tem o cheiro da tangerina e todo o esplendor da flor de maracujá
e, além disso, cabe no espaço exato onde é possível se aninhar

cabe na extensão da orla de boa viagem
na vista espelhada que não finda
no colorido das ladeiras de olinda

cabe na calma das maiores tempestades
no grito que se ouve dos morros às montanhas de pequim
e faz poesia com uma tarde ensolarada em tambaú

cabe na grandeza de um três por quatro
guardado no fundo da gaveta de um já conhecido baú
mas que poucos podem sentir

cabe no sono dos ponteiros bêbados
na beleza singular dos pingos de água de chuva
quando imitam as lágrimas de chaplin

cabe na combinação diária da lua com todos os seus sóis
na exatidão da mão, quando se encaixa, perfeitamente, na luva.
tudo que eu amo cabe, extraordinariamente, fora e dentro de nós. 

tudo que eu amo
cabe no que existe entre o sábado e o domingo e aquele feriado
cabe, sem caber em toda a grandeza, na sua presença ao meu lado.