tudo que eu amo
cabe no intervalo
entre o domingo e o sábado
cabe no bolso da calça azul
com traços velhos da labuta diária
e nos sinais do tempo já de amanhã
cabe na melodia semitonada
na chuva que cai de madrugada
e que só é vista pelo vigia que faz sua ronda
solitária
cabe na décima terceira cor do estojo da
menina
na segunda xícara suja de café
esquecida sobre a pia da cozinha
no lenço da mão direita que dá adeus
no esquecimento do que ainda não se perdeu
na vigésima quinta hora sem sono e sem
companhia.
tudo que eu amo
cabe no rascunho jogado no lixo
e na alegria triste do palhaço do circo
cabe na lentidão de um voo a jato
na falta de relação entre o cérebro e o ato
no não, no sim e no talvez
cabe na brancura da sua pele
no tapete amarelo formado pelos ipês da lagoa
e no silêncio da sua tez
cabe nos filmes de woody allen
nas pinceladas fortes de frida
e nas cenas certeiras de almodóvar.
tudo que eu amo tem a relevância própria
de cada passo dado ao final do nono mês
e, por isso, cabe na queda de quem não tem
medo de andar
cabe no cheiro suave de uma água de lavanda
na cantoria estridente debaixo do chuveiro
na água quente da torneira azul e na parede
já desbotada
cabe no princípio de uma velha canção que
bate à mente
na imagem da revoada, no céu, brincando solta
no ardor sutil e na cor da pimenta dedo de
moça
cabe na taça requintada de cristal de
qualquer cor que seja
na fumaça que não precisa anteceder o
incêndio
e no indispensável afago do colo de quem me
beija
cabe na dor poética de clarice
nas rimas musicais de cecília
e na entrega desmedida de hilst.
tudo que eu amo
cabe na precisão de gil
e em cada letra de caetano
cabe no trajeto de cada sua partida
no formato que configura a ausência de alguém
em ‘todo sentimento’ que só chico tem
cabe na métrica livre de vinícius
na poesia imagética de drummond
no seu assovio desprovido de qualquer tom
cabe no descompasso de um parabéns sem jeito
nem graça
na liberdade do colorido das pipas dançando
na praia
e no bater de um peito ao primeiro sinal de
desgraça.
tudo que eu amo, eu bem sei, certamente terá
seu fim:
pode se esgotar com as primeiras águas de
abril
ou secar antes mesmo de uma nuvem cheia, em
mim, chegar.
mas tudo que eu amo tem azul no nome
tem o cheiro da tangerina e todo o esplendor
da flor de maracujá
e, além disso, cabe no espaço exato onde é
possível se aninhar
cabe na extensão da orla de boa viagem
na vista espelhada que não finda
no colorido das ladeiras de olinda
cabe na calma das maiores tempestades
no grito que se ouve dos morros às montanhas
de pequim
e faz poesia com uma tarde ensolarada em
tambaú
cabe na grandeza de um três por quatro
guardado no fundo da gaveta de um já
conhecido baú
mas que poucos podem sentir
cabe no sono dos ponteiros bêbados
na beleza singular dos pingos de água de
chuva
quando imitam as lágrimas de chaplincabe na combinação diária da lua com todos os seus sóis
na exatidão da mão, quando se encaixa, perfeitamente, na luva.
tudo que eu amo cabe, extraordinariamente, fora e dentro de nós.
tudo que eu amo
cabe no que existe entre o sábado e o domingo e aquele feriado
cabe, sem caber em toda a grandeza, na sua presença ao meu lado.